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 Filme "Joaquim" - 2017

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cena do Filme Joaquim (2017)
Cartaz do Filme Joaquim (2017)

A referência a Machado de Assis e suas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) logo na primeira cena de "Joaquim" que, assim como o romance, também apresenta o ponto de vista de um narrador-defunto, talvez tenha ecos bem mais profundos do que um recurso meramente estético. Narrando uma versão fictícia para eventos prévios à Inconfidência Mineira, o cineasta Marcelo Gomes mostrará ao espectador mazelas que atormentavam os brasileiros naquela sociedade ainda submissa à Coroa Portuguesa e que perduraram na estrutura social na qual viveu o Bruxo do Cosme Velho..

 

Machado abordou ironicamente a passagem do Império à República em uma deliciosa passagem de Esaú e Jacó (1904), na qual a personagem Custódio solicitou o serviço de pintura de uma velha placa que estava diante de sua confeitaria e cujos dizeres deveriam ser "Confeitaria do Império". Como a madeira dessa placa estava muito velha, o pintor recomenda que se faça uma nova tabuleta. Nesse meio tempo, ocorre a Proclamação da República. Custódio manda um bilhete ao pintor, pedindo que aquele “Pare no d.” O confeiteiro não sabia se deveria optar por República ou Império para nomear seu comércio. Com esse recurso irônico, o escritor carioca nos revela a percepção de que tanto a República quanto o Império seriam meros "adornos de fachada", que não provocariam mudanças estruturais na política ou no país.

Quase um século antes dessa publicação de Machado, expoentes da população das Minas Gerais começaram a conspirar contra Portugal, economicamente exauridos pelo esgotamento da produção aurífera em conjunto com os impostos cada vez mais altos cobrados pela metrópole. Em "Joaquim", ecos dessa conspiração só surgem na tela bem ao final do filme. 

Antes, o que vemos bem pode resumir-se ao abandono. Ou, pior do que isso, escravidão. Porque tanto os homens pobres "livres" quanto seus escravos têm a vida regida, por um lado, pelo descaso institucional e, por outro, pela necessidade de manter financeiramente a existência dessas instituições que pairam como estrutura de exploração de seus súditos. Não por acaso, as figuras que emocionalmente mais se aproximam do alferes Joaquim (vivido pelo ator brasileiro Júlio Machado) são dois escravos: Preta (vivida pela atriz portuguesa Isabél Zuaa) e João (interpretado pelo ator luso-guineense Welket Bungué). São parceiros na miséria: vidas desperdiçadas e gastas na manutenção de uma situação que lhes é totalmente desfavorável. 

Os corpos maltratados e sujos retratados no filme contrastam com a a natureza hostil, mas exuberante, que os cerca. É o conflito entre barbárie e cultura o que vemos quando a pequena expedição em busca de ouro se vê na mata, amedrontada pela possibilidade de encontro com uma fera. O traje dos oficiais se parece com uma fantasia de mau gosto naquele meio, dificultando e tornando ainda mais desconfortável seu deslocamento entre as plantas e a umidade. Mas não só o absurdo dos trajes inverte as concepções cientificistas que tentavam comprovar a inferioridade dos povos nativos. Não fosse os conhecimentos práticos do índio brasileiro e do escravo africano que acompanham a trupe, os funcionários da Coroa dificilmente sobreviveriam. Mais uma vez, nos é apresentado o tema do abandono. Por ordem de seus superiores, aqueles homens devem desbravar territórios hostis aos seus intentos. E para fazê-lo, só contam com a ajuda dos seres mais desvalidos daquela terra.

 

 Pouco a pouco, podemos perceber que esse abandono gera dois polos de reações. De um lado, o desespero crescente e o desejo de rompimento daquele estado de coisas. De outro, o conformismo e o desejo de participar de forma vantajosa dos mecanismos de exploração do outro. Ao ver-se envolvido com o primeiro polo, Joaquim sela seu destino. O final do filme, brusco, o mostra em um quase delírio de pertencimento e de esperança.  Logo depois, ele abandonará sua biografia de homem incompleto e desejante para se tornar um mártir. Ou bode-expiatório de uma classe que articulava mudanças.  Tiradentes não viveu para vê-las.  E, tristemente, mais de dois séculos após a sua morte, o descolamento dos dirigentes em relação ao povo que o sustenta parece ainda ser um dos principais problemas desta terra.

Assista ao trailer

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